The Song Remains the Same.

25/05/2017 13:30

Sempre afirmei que o jazz é um som noturno. Gosto de ouvi-lo nesse período.

Passava das vinte e duas horas, no instante em que abri uma cerveja, me servi de uma dose de Jack Daniels e coloquei para tocar “Kind of Blue” de Miles Davis e John Coltrane, depois “My favorite things, com John Coltrane. Seguiram-se Thelonious Monk e, claro, Chat Baker e Charlie Parker.

A música invadia minha biblioteca. Apenas senti-a.

Música não é algo para preencher um espaço. Não se ouve música para fazer alguma coisa, como um complemento. Escutar música, no meu entender, é uma experiência estética que no máximo deve ser acompanhada em silêncio. Não existe para fugir dele ou do tédio. Não é banal. É Arte.

Esvaziei meu cérebro de pensamentos, como se fosse um estágio de satori. Fechei os olhos e “viajei”.

Ao reabri-los, estava à minha frente um homem negro, estatura mediana, cabelos cacheados, presos num “rabo de cavalo”, meio “dreadlocks”. Portava um piston Selmer reluzente. Permaneci em silêncio.

Logo em seguida outro negro alto estava diante de mim. Portava um saxofone Selmer de um dourado meio fosco e um chapéu coco na cabeça.

Em meio ao meu espanto, outro homem negro. Esse com um chapéu estranho e uma risada engraçadíssima.

Num piscar de olhos, outro negro. Elegantemente vestido – terno e gravata – portava um sax alto, Selmer também.

Para completar a minha perplexidade: um branco. Rosto marcado pela dureza da vida. Marcas próprias de um ex-usuário de heroína, todavia, conservando uma beleza de tempos anteriores. Possuía um ar de galã. Portava um trompete, obviamente, Selmer.

Incrédulo, boquiaberto, perguntei-lhes: “ – São quem estou pensando? ”

Todos riram. Apenas responderam: “ – Oh! Yeah!!!!!

Ofereci-lhes bebida.

Entreolharam-se. O homem dos dreadlocks respondeu: “ – Estamos em outro plano. Não consumimos mais nada terreno”.

Me voltei novamente ao grupo e insisti: “ – Afinal, são mesmo Miles Davis, Thelonious Monk, John Coltrane, Chat Baker e Charlie Parker”?

Confirmaram. Apenas acrescentaram: “ – Você merecia nossa visita. Afinal, ao nos ouvir de forma tão reverente e respeitosa e continuar a divulgar nossos trabalhos, com tanta paixão e entusiasmo, entendemos que seria justo solicitar uma permissão superior e falarmos isso – perdoe-me a hipérbole – pessoalmente”.

Agradeço de coração. Todavia, reitero: “ – Não faço mais que minha obrigação. Afinal, vocês são gênios, deuses da música e, portanto, merecem toda reverência e glória terrenas, Vossa música é imortal!”.

Dessa vez Charlie Parker pediu a palavra: “ – Devo acrescentar que Clint Eastwood rendeu-me maravilhosa homenagem, ao realizar seu filme “Bird”.

  – Caro Yardbird, permita-me trata-lo assim. Amo o cinema de Clint Eastwood esse filme é uma de suas grandes películas. Também é apaixonado por Jazz e por sua música. Foi perfeito.

–  “Lá de cima, me emocionei”. Disse-me Charlie Parker.

– Senhor Monk, por favor, permita-me uma observação:  suas dissonâncias ao piano, seu poder de improviso, alçam-no a uma condição única no Jazz.

–  “Muito Obrigado. Pode me chamar de Theo. Todavia, faço questão de acrescentar nesse rol, Bill Evans, Oscar Peterson, Gil Evans, Dave Brubeck, Herbie Hancok, Art Tatun, Countie Base, Mc Coy Tayner, Chic Corea, Bud Powell e, óbvio, o gênio da raça, Duke Ellington. Duke é sinônimo de elegância e sofisticação”.

–  Concordo Theo. Porém, seu som é revolucionário.

– “Ok Man! Somos o free jazz, o bebop! Yeahhhhh!”.

– “ O jazz é uma revolução sonora permanente, na qual não há espaço para medíocres”. Salientou John Coltrane.

–  Senhor Coltrane: permita-me parabeniza-lo pela elegância. Não só no traje, mas, principalmente na música. Seu disco “A Love Supreme” and God é definitivo. Tenho verdadeira devoção pelo seu trabalho. A palavra gênio não consegue explicitá-lo por completo.

–  “Oh Man! Easy! Take easy! Came on... Pode me chamar de John”.

–  Ok. John, seu trabalho é infinito, na medida em que une várias vertentes do jazz, enriquecendo-as.

–  “Ok. Concordo. Amo Sidney Bechet, Coleman Hawkins, Ornette Coleman e Milles. Yeahhhh!”.

–  Querido Chat, você é sublime, tanto como instrumentista, quanto cantor. Sua voz cool, seu canto introspectivo, emocionam ao extremo. Minha querida prima Kátia deu-me de presente dois CDs trazidos de Chicago: um de John, com My Favorites things. Não preciso dizer: arrebatador. Outro, seu cantando. É absurdo! Também ganhei de minha cunhada Jianne um CD de uma apresentação em Paris. Você abre com “Summertime”. O que dizer?

–  “Thank you Man! Hoje, lamento erros do passado. Me chapei demais com a heroína. Foi cagada! Me afundei nas drogas. Por um tempo, perdi minha música. Quando fui recuperá-la... Já havia muitas sequelas...Sem contar uma forte angústia”.

– Temperou sua música, cara. Todavia, compreendo, o preço foi muito alto. Sinto uma forte dor no coração, por não ter conseguido vê-lo ao vivo.

– “ Continue ouvindo meus CDs – é assim que vocês escutam música agora? –, mantêm nossa música viva”.

– Por fim: Chat você poderia ter se tornado um galã de cinema. Tem um rosto muito bonito.

– “ Man, meu barato é a música. Essa é minha praia”. (risos)

– Tem razão!

– Senhor Davis, permita-me expressar minha devoção pelo seu trabalho. Seu Jazz mudou minha vida. É uma referência estético-intelectual permanente. Seus discos são uma profusão de criações, as quais mudam sempre, inovam. Inovação, revolução sonora, criação perene, parecem ser seu signo.

– “Oh Man. Thank you. Pode me chamar de Miles. Desde minha primeira gravação, quando cheguei em casa, feliz e realizado, fui mostrar meu disco para a minha mãe. Toquei-o na vitrola. Ela ouviu em silêncio e me perguntou: “– Você quer agradar aos brancos?”. Aquilo me marcou. Retornei ao estúdio, compus e gravei como um negro. Som e fúria, cara”.

– Fez uma revolução no Jazz e na música no geral.

– Miles, quero agradecê-lo por todo seu trabalho. Em particular por “Tutu” e “Amandla”. São pérolas preciosíssimas em meio a toda sua rica produção.

– “Não poderia deixar de render homenagens a Desmond Tutu e a escancarar minha luta contra o racismo, em particular a aberração do regime racista na África do Sul”.

– Evidente.

– Querido Miles, permita-me externar uma frustração ligada a ti: comprei ingresso para vê-lo no Free Jazz Festival. Você não veio. Havia adoecido seriamente. Houve uma jam session, no seu lugar. Não se trata de substituí-lo. És insubstituível. Algumas apresentações foram sublimes, outras nem tanto, outras chatas...

– “Também fiquei triste de não poder comparecer. Todavia, meu processo de passagem tinha começado. Fiz muita merda em vida. Tinha que pagar um preço”.

– Mas, frustrou-me.

– “ Fazer o quê...”

– “Perdoe-nos. A conversa se alongou. Foi ótima, porém, recebemos sinais para retornarmos. Tá na hora”. Antes que pergunte alguma coisa do além... Já sabe. Não estamos autorizados a comentar coisa nenhuma”.

– Eu sei. Nietzsche e Lênin já haviam me alertado.

– De qualquer modo.... Dizer que foi um prazer, uma emoção absurda, um sonho realizado, uma experiência divina... É redundante. Não consigo expressar. Se fosse músico, comporia alguma coisa. Sei... Nada que ficasse as altura de vocês, monumentos da música.

– “Continue a ouvir e a divulgar nossos trabalhos. É a maior homenagem que se pode realizar”. Disse-me Bird.

– “Mantenha-nos vivos pela música”. Falou Coltrane.

– “Continue se emocionando com nosso som”. Emendou Chat.

– “ Continue a difundir nosso trabalho”. Frisou Theo.

– “Você tá ligado. Sabe o que fazer. Siga assim, mano”. Completou Miles.

– Amo vocês e vossa música. O mínimo que posso realizar, é continuar a ouvi-la, difundi-la e, sem exagero, venerá-la.

– “ Nós também te amamos”.  Responderam em uníssono. Como uma orquestra.

Partiram...

Abri os olhos. A música continuava. Pensei: Essa é uma bela história. Por que não contá-la no “Cultura” para celebrar o centenário do Jazz

.