Sonho de consumo

09/12/2018 12:23

 

Das entrevistas de emprego que frequentara nos últimos meses, aquela era a única que tinha lhe permitido passar para a terceira etapa: a entrevista.

Diante do responsável do RH da empresa de recrutamento ele estava impecável: terno e gravata, barba feita, perfume discreto. Tentava aparentar calma e tranquilidade e se sentia confiante para dar as melhores respostas.

– Então, Sr. Carlos, analisamos seu currículo: inglês e norueguês fluentes, boas escolas, curso superior com MBA, mas três empresas falidas. Como pode nos explicar isto?

– Veja, bem, nesse país as coisas não são fáceis. Impostos, taxas que não acabam mais, funcionários com tantos direitos. E a fiscalização não dá trégua, se a gente não paga direito eles vêm pra cima, e ai a gente fica refém das propinas. Não é fácil a vida de patrão. Tive que desistir. Agora, me contento em colaborar com os que ainda ousam em ser empregadores.

– Analisamos seu currículo –  rebate o entrevistador –, mas como o senhor mesmo disse, as coisas não estão fáceis. Com o período do Natal se aproximando aparecem muitas vagas. O comércio varejista está confiante, apesar de não ter conseguido bater as metas com a “Black Friday”. São muito promissoras as expectativas para as vendas de final de ano com a entrada do décimo terceiro salário.  Os shoppings centers são os que mais necessitam de colaboradores.

– Para ser sincero, minhas pretensões vão além. Sei que tenho muito a oferecer, mas se me derem uma chance, tenho certeza que poderei oferecer meus préstimos e confio na minha capacidade para ser efetivado passado esse período.

– Entendemos suas pretensões, são legítimas. Um de nossos parceiros – renomado shopping center de elite – ficou muito interessado em suas qualificações, principalmente na fluência do norueguês. E, no momento o que temos para lhe oferecer é uma vaga para “Papai Noel  da Lapônia”, lhe interessa?

Não era isso que Carlos tinha como meta. O tempo de espera por um emprego – que não chegava –, o desespero e as dívidas se acumulando bateram mais forte. Afinal, poderia levantar algum dinheiro. E até que não era má ideia se fantasiar de “bom velhinho” e ficar umas horas sentado  dizendo: “ho, ho, ho du var en god gutt vil vinne en vakker gave (você foi um bom menino vai ganhar um belo presente) ”. Topou.

Chegou ao local na data e hora combinados. Recebeu a indumentária toda: roupas, botas, cinto barba e peruca. Além do sacrifício de colocar uma enorme barriga postiça (que sequer imaginou ter que usar) teve que aturar o tal maquiador e seus trejeitos espalhafatosos. Mas, a “grana” para “Santa Claus” bilíngue era bem-vinda.

Sentado no trono vermelho, diante da enorme fila, Carlos, agora Santa Claus, iniciou sua jornada. Foram tantas crianças e mães e pais e babás e avós, tias e afins;  e birras e choros e malcriações – aonde estavam as crianças dóceis e sorridentes das propagandas? – que o “saco  já tava ficando cheio”. Nem o ar condicionado dava conta de amenizar o calor daquela fantasia que para ele agora soava também ridícula.

A tão esperada pré-estreia do Papai Noel que falava norueguês, vindo diretamente da Lapônia (que, segundo a lenda é a terra do tal), atraiu tanta gente que não deu nem para fazer a pausa para a refeição.

Malcriação, calor, fome e cansaço já estavam fazendo com que o saco do “bom velhinho” estivesse próximo da boca. Quase dez horas da noite e a fila imensa. Carlos não aguentou, explodiu. Num rompante de ira levantou-se dizendo em alto e bom português  que seu horário tinha terminado.

Lapônia, Santa Claus, Natal, crianças, a parentalha toda: que fossem pra “casa do chapéu” (não fica bem num texto natalino colocar o palavreado chulo que ele pensou em dizer daquilo tudo).

Na fila, crianças se esgoelavam; adultos protestavam indignados com a desfaçatez do Santa Claus. Nas redes sociais foram postadas filmagens da cena inusitada.  Muitos exigiam providências. Alguns clamavam em voz alta: comunista filho da p...; com essa roupa vermelha deve ter vindo da Rússia; será que não pode compreender o sonho de consumo das nossas crianças? Vai pra Cuba, maldito!!!

Encerrada a breve carreira, Carlão Noel concluiu: é difícil ser patrão, não é muito fácil ser empregado. Pra sair da pindaíba já traçava planos: tentaria carreira política; se não desse certo ia de assessor parlamentar mesmo. Quem sabe não arranjaria uma boquinha de motorista e se descolava.