Os Estatutos do Homem (Ato Institucional Permanente)

31/05/2014 21:59

Há exatos cinquenta anos, abril de 1964, instaurou-se em nosso país um dos períodos mais truculentos de nossa história e, paradoxalmente, um dos mais férteis para nossa cultura. Música, literatura, teatro, cinema, enfim, grande parte de nossa intelligentsia engajou-se na luta pelos direitos civis, pela democracia, pela liberdade. Muitos desses intelectuais, por óbvias razões, partiram para o exílio. Dentre eles, um em particular, me encanta não só pelo conteúdo humanístico de sua obra, mas pela coerência com que procura vivenciá-la: o poeta de “Os Estatutos do Homem”.

Amadeu Thiago de Mello, ou simplesmente Thiago de Mello, nascido na rica diversidade da floresta amazônica, na cidade de Barreirinha, em 30 de março de 1926, viajou o mundo por opção (foi adido cultural na Bolívia e no Chile) e por imposição (exilado durante a Ditadura Militar); e ao retornar ao país, foi novamente viver na floresta para dedicar-se e à preservação e às  comunidades da Amazônia. Quando perguntado por que ainda vive lá, ele diz: “Voltei para lá, logo depois de minha chegada do exílio, na Alemanha. Vivo lá não só para escrever, como também, reparto um pouco da minha vida, da minha esperança, com aqueles seres tão abandonados, esquecidos. Aprendo mais com eles do que eles comigo”.

Há cerca de sessenta anos abandonou o potencial rentável de um curso de medicina para dedicar-se integralmente ao difícil e impreciso caminho da arte poética.

Em 1960, no Rio de Janeiro, foi apresentado, por Jorge Amado, a Pablo Neruda. Diz ele, que ao cumprimentá-lo, Neruda recitou dois versos de um poema de sua autoria. Admiração mútua. No ano seguinte, nomeado Adido Cultural da Embaixada Brasileira no Chile, reencontram-se; gentilmente, como era do feitio do poeta chileno,  convidou-o a morar em sua casa, onde ficou por quatro anos.

Esse exercício de convívio os aproximou. Viajavam, cozinhavam, trocavam ideias, traduziam poemas um do outro. Tornaram-se amigos.  

Com Neruda, aprendeu duas importantes lições: do ponto de vista literário “o dever de tornar o idioma poético acessível, sem perder o compromisso com a arte, com o belo”; e, “no plano humano, que a amizade é a mais alta forma de amor”.

Autor de mais de trinta livros editados em diversos países, ele se diz muito satisfeito em viver modestamente de sua palavra escrita e falada e que talvez seja o único de sua geração que esteja vivendo dessa forma.

Seu mais famoso poema, dedicado ao escritor Carlos Heitor Cony (um dos primeiros intelectuais brasileiros a se colocar frontalmente contra o golpe do regime militar através de crônicas reunidas no livro “O Ato e o Fato”), intitulado “Os Estatutos do Homem (Ato Institucional Permanente)”, é reverenciado internacionalmente.

Foi publicado em inúmeros idiomas, percorreu o mundo; tornou-se um lema em favor da liberdade e da dignidade humanas. Na Índia, foi declamado em híndi, para uma multidão de cem mil pessoas durante o Primeiro Encontro para a Paz naquele país; na ONU foi lido e reproduzido na abertura do livro documental de encontro de pensadores e poetas do mundo todo; foi declamado na abertura dos trabalhos da nossa Assembleia Constituinte (1987), acompanhado pela Orquestra Sinfônica de Brasília, entre tantos outros eventos pelo mundo.

Ao comentar sobre seu poema, o poeta nos diz que o escreveu pensando no seu povo, sobretudo, no destino do homem. Que ele ganhou vida própria, saiu voando por ai e não mais lhe pertence. Que continua mais vivo do que quando o escreveu e mais útil à consciência e ao caminho da esperança de que é possível a construção de uma sociedade humana solidária.

O paradoxo (a que me referi no início) é que essa ode à liberdade, à dignidade e à esperança; reverenciada no mundo inteiro, que se tornou maior que seu próprio criador, tem sua origem justamente quando Thiago de Mello, no Chile, leu o primeiro ato institucional publicado pelo comando do regime militar em 1964 - AI 1 -  que em síntese revogava os direitos políticos e a liberdade de todos os cidadãos brasileiros!