O Luxo e o Lixo

21/10/2016 15:39

Sexta-feira passada, dois de Setembro, saímos, eu, a Jacqueline e nossa filha Sophia, em direção a nossos trabalhos e estudo. Apressados, enquanto dirijo, Jacqueline folheia esse rotativo. No dia em questão, houve um comentário após a verificação do jornal, nas mãos de nosso rebento: “- O cachê do Gustavo Lima despencou. Agora cobra só noventa mil reais”.

Evidente, não é ruim, todavia, para quem já cobrou mais de quinhentos mil por apresentação, denota uma decadência.

Lembrei a ela do conceito de “Indústria Cultural” de Adorno e Horkheimer, filósofos da Escola de Frankfurt. Tratamos o tema ano passado. Do qual se recordou rapidamente.

Seguiu-se o dia e noite de trabalho e estudo. Exaustivo. Ao final da jornada cumprida, recebi o convite da Jacqueline para irmos ao “Colher de Pau”, recém-inaugurado em novo endereço, na Avenida dos Arnaldos. Aceitei óbvio.

Ao entrarmos, tive uma bela surpresa, além do magnífico ambiente, tocava “Desde que o Samba é Samba” de Caetano Veloso e Gilberto Gil. Em minha opinião, uma das maiores joias do cancioneiro brasileiro. Coisa de gênios.

Encantou-me no mesmo instante. Em seguida, funcionários gentilíssimos e a proprietária reafirmaram: “- Aqui não toca sertanejo. Somente música de qualidade”.

Enquanto degustávamos cerveja e consumíamos uma deliciosa porção de calabresa, Jacqueline e eu discorríamos acerca da beleza da música ouvida ao entrarmos e, em particular, do desequilíbrio da produção de Caetano Veloso. Alguém capaz de criar letras como a citada, ou ainda, versos como “Cajuína”: “E éramos olharmo-nos, intacta retina... A cajuína cristalina em Teresina”. A música em questão fora composta depois de um encontro entre Caetano e o pai do genial poeta, jornalista e compositor piauiense Torquato Neto. Cujo fim trágico, ao por termo à vida, aos vinte e oito anos, em 1972, rompido com Caetano e o Tropicalismo, deixara uma série de dúvidas no pai. No momento em que o baiano apresentara-se na capital do Piauí, o genitor aproveitou para procurá-lo, a fim de obter alguma compreensão para a decisão de seu filho.

Caetano conta que ambos sentaram-se em torno de uma mesa, a qual, no centro tinha uma garrafa de cajuína, destilado tradicional daquele Estado.

O silêncio constrangedor produziu tempos depois à bela letra.

Simultaneamente, nos lembramos de que o mesmo compôs: “- Quem coxixa, o rabo espicha”. Patético.

Com isso, retornamos ao tema popular e popularesco, caro ao conceito de “Indústria Cultural”, isto é, os filósofos alemães afirmam que em razão do capitalismo preocupar-se apenas com o lucro, tudo deve ser transformado em mercadoria, para, em seguida, ser convertido no próprio. Assim, nem o mundo do entretenimento, das culturas popular e erudita escapam ilesos.

Sem pensarmos no conceito de Bauman, “Modernidade Líquida”, tudo se torna mais rápido, mais insípido e inodoro. Escorre.

Nesse sentido o eclipse do tal Gustavo Lima é questão de tempo. Está a escorrer. Os últimos sumos do bagaço da laranja que fora para a “Indústria Cultural”, estão a se esvair. Os atuais noventa mil reais de cachê transformar-se-ão em muito menos em breve, até o ostracismo completo.

Como ele, o famigerado sertanejo e filhotes do gênero. O lixo.

E Caetano? Apesar da irregularidade, dos momentos popularescos, produziu clássicos da música popular. Esses são eternos. Por sê-los, imortais. Imunes a “Indústria Cultural”. O luxo. Perenes.