O dia em que temi usar vermelho

24/03/2016 02:23

Em seu livro “Numero Zero”, o escritor, professor, filósofo, semiólogo, linguista e bibliófilo italiano Umberto Eco, escolheu o ano de 1992 para narrar um romance aparentemente simples: os mistérios não resolvidos que sacudiram  a Itália, entre eles o protagonizado pela loja maçônica Propaganda 2 do temido Licio Gelli, que queria dar um "golpe branco". O ano em questão foi marcado pelos escândalos de corrupção e pela investigação "Mani Pulite" (Mãos limpas), que arrasou com boa parte da classe política da época.

A jornalista Milly Lacombe publicou em seu blog recentemente que uma amiga lhe escreveu o seguinte: “Tenho em mãos o último livro do Umberto Eco, ‘Número zero’, que é uma verdadeira denúncia do que se transformou a imprensa no Ocidente. [Eco] diz: ‘A questão é que os jornais não são feitos para divulgar, mas para encobrir as notícias’. Além disso, mostra como a direita barra-pesada (elites locais + CIA + corporações) mudou de estratégia com o fim da Guerra Fria e a queda do Muro. De lá pra cá, se especializaram em destruir e desqualificar a política — partidos, associações, sindicatos –, enquanto tratam de cooptar e dirigir os sistemas judiciários. A operação ‘mãos limpas’ na Itália foi isso. E permitiu a ascensão do Berlusconi. No Brasil, a Lava Jato tem rigorosamente o mesmo objetivo. É ou não é essa a receita? Somos todos corruptos, nenhum partido presta — especialmente o PT –, e aí vem o Moro (!!!) resolver nossos problemas?”.

A tentativa frustrada de prender o ex-presidente e as ações seguintes do mais novo herói nacional criou um fato político que quebrou várias regras do Estado Democrático de Direito: vazou depoimento sigiloso, grampeou telefonemas da presidência espalhando-os na mídia....

O filosofo italiano Antonio Gramsci em seus Cadernos do Cárcere nos propõe a reflexão para compreender como se formam as explosões de pânico, a contaminação coletiva por uma ideologia por meio do medo e da formação de sensos comuns – ideias-força sem necessariamente nenhuma racionalidade, mas de fácil aceitação, capazes de comover, envolver ou amedrontar. Os meios de comunicação são fundamentais na criação dessas mudanças culturais muito rápidas.  Segundo sua  teoria o poder Judiciário é um aparelho ideológico de vocação conservadora, resistente a mudanças, inclusive as definidas pelo jogo democrático.

Em tempo, Gramsci tentou descreveu o que ocorria em seu país, em que as pessoas eram orientadas por uma cega adesão à liderança de Benito Mussolini, criador do fascismo – sistema político econômico e social baseado no nacionalismo, totalitarismo, na censura, na violação dos direitos das minorias e na extinção das conquistas sociais em benéfico do capitalismo. Tarso Genro o definiu bem: “uma das características do fascismo é a criação do seu próprio sistema de direito, através da ação, através do movimento, não importando o que dizem as leis, o que regem as normas, o que garante a Constituição política”.

Qualquer semelhança com as obras dos autores italianos acima citados – não caro leitor – não é mera coincidência!   O que está em jogo em nosso país não é a luta contra a corrupção. Não é a voz do povo clamando por justiça! Fosse isso verdade não sobraria pedra sobre pedra.

Em nível federal, a Lava Jato é apenas uma das operações em curso e que tem denúncias de vários partidos e políticos envolvidos no esquema; e, não nos esqueçamos dos desmandos e corrupção em estados e municípios (Banestado, merendas, Samarco, chacinas e afins), das falcatruas no Judiciário  e também da operação Zelotes que investiga dezenas de empresas – bancos , emissoras de televisão e grupos jornalísticos – envolvidas em um mega esquema de sonegação de impostos.

Ao que tudo indica “aselite” fizeram um grande acordo: mudam o foco, elegem o PT como bode “expiatório (isso não quer dizer que não tenham culpa no cartório), insuflam na população o ódio aos partidos de “esquerda” e aos projetos de erradicação da pobreza, derrubam o governo, impedem a candidatura do Lula, encerram as investigações dos aliados. E de quebra: criam o novo herói nacional – Super Moro – e retornam com seu projeto de poder!

No romance de Eco o protagonista diz: “...estamos nos acostumando a perder o senso de vergonha. (...) corrupção autorizada, o mafioso oficialmente no Parlamento, o sonegador no governo, na cadeia só os albaneses ladrões de galinhas. As pessoas de bem vão continuar votando nos canalhas. (...) É só esperar: depois que se tornar Terceiro Mundo de uma vez por todas, o nosso país será plenamente viável, como se tudo fosse Copacabana.” E o autor revela que elegeu 1992 para situar o livro porque nesse momento houve esperança, surgiu a operação 'Mãos Limpas' e parecia que tudo mudaria, havia a luta contra a corrupção, mas chegou Berlusconi e as coisas aconteceram exatamente ao contrário.  “Número zero”, segundo o autor não é somente uma crítica aos vícios do jornalismo sensacionalista e manipulador: Umberto Eco aponta o dedo para os vícios que cultivamos dentro de nós, e que permitiram chegarmos a esse ponto.

No dia dezoito de março fiquei tentada a usar a camiseta vermelha que às vezes uso para trabalhar – mesmo sendo a camiseta oficial do Paris Saint Germain que ganhei da minha irmã –. Desisti temendo reações mais acaloradas de algum defensor do impeachment; fosse eu mais nova teria ido à São Paulo no ato contra o golpe. Como bem diz o Leandro Karnal, a consciência nos torna covardes.

Aproveito para transcrever uma parte da fala de Karnal em “Hamlet de Shakespeare e o mundo como palco”: ...há uma consciência terrível em Hamlet que é sobre a política; a peça, como tudo em Shakespeare tem um viés político. A frase mais citada da política shakespeariana é quando o príncipe diz “Há algo de podre no Reino da Dinamarca”. Hamlet sente que a corte está tomada pela corrupção e ele não sabe o que fazer.... Diz Harold Bloom, um dos maiores especialistas em Shakespeare, que ‘foi a consciência que o envelheceu, a consciência catastrófica da mazela espiritual que assola o mundo que ele internalizou e não quer ser chamado a curar, tão somente porque a verdadeira causa de sua versatilidade é o impulso rumo à liberdade.... Todo Estado tem algo de podre e os que têm sensibilidade semelhante à de Hamlet cedo ou tarde vão se rebelar’. Há uma categoria de pessoas, dando um conselho político hamletiano, que são as pessoas felizes. Essas pessoas felizes no Brasil seriam aquelas que acreditam, profundamente, e muitas pessoas acreditam, que a corrupção está a cargo de um partido e que bastaria tirar esse partido do poder para que o reino da justiça e da igualdade se instalasse no país. São pessoas muito felizes ... que substituíram cultos como do Papai Noel e do Coelhinho pelo culto da corrupção isolada...Estou dizendo o que venho manifestando muitas vezes na televisão ou em textos, que a corrupção que Hamlet nota no leito de sua mãe na Dinamarca, na microfísica do poder é a corrupção que começa no andar pelo acostamento; a corrupção que começa no recibo de dentista comprado para entregar ao Imposto de Renda. A corrupção que continua no atestado médico falso, entregue pelo pai para justificar a ausência do filho, que apenas vagabundeou para não fazer a prova.... A corrupção continua em todos os lugares e apenas numa ponta do iceberg e como ultimo elemento da corrupção ela chega, a um partido, a um governo e a um poder. Se a corrupção fosse de um grupo eu seria uma pessoa profundamente feliz... Hamlet na sua consciência vai percebendo que o mal vai por todos os lados, inclusive nele. ...A consciência nos torna covardes , porque quanto mais eu envelheço ... mais eu tenho medo. Quanto mais eu tenho medo mais eu vou tendo consciência do mundo.... A ignorância é uma benção. Uma benção profunda. Quando eu sei que a mudança de um governo não é a mudança de uma estrutura, eu não vou ter a alegria, a expectativa daquela nova posse no dia primeiro de janeiro, com  o novo partido que vai restaurar a ética num país enfim transformado. Quando as pessoas dizem que na Ditadura era melhor eu digo: - É era uma beleza, eu lembro dessa beleza, desse paraíso...Mas não era isso. A democracia pelo contrario trouxe a tona todas as mazelas desse nosso mundo e este é o defeito da democracia: ela nos dá a consciência do que somos e por isso esse espelho de Oscar Wilde, esse espelho de Dorian Gray é desagradável porque é a Medusa, é a górgona que nos contempla....”.

Portanto, nesses tempos conturbados, o que mais precisamos é de lucidez. O que está em jogo é um projeto político de poder e, que por esse poder e, somente por ele, nos move, a todos, para que a estrutura continue a mesma. Apostando na tática do quanto pior melhor, utilizando a justiça – e consequentemente a opinião publica baseada no senso comum – para condenar sem provas, apenas uns poucos, usando o apelo e a influência da mídia fascista e a serviço daqueles que querem trocar as figuras sem mexer na base é um duro golpe à nossa tão incipiente democracia e às poucas conquistas política, econômicas e sociais que obtivemos.

Que cada um possa escolher a cor de sua roupa como assim lhe aprouver!