Nannerl

04/03/2016 21:20

 

A tarde fria daquele outono lhe trouxe lembranças de um tempo longínquo. O piano daquele cômodo não era o mesmo, mas evocava a época em que juntamente com seu irmão tocavam. Ah, tempos de glória!

Mesmo sem poder enxergar as recordações lhe proporcionavam novamente a ambiguidade de sentimentos por tanto tempo sufocados. A visão voltava com as memórias.

O irmão, pequenino e travesso, arriscava-se ao subir na banqueta para imitá-la nos exaustivos exercícios ao teclado. O pai, para sua surpresa, exultante, incentivou a peraltice e no ano seguinte eram os dois a aprender. Sua felicidade era completa: o admirado pai e o amado irmão sempre ao seu lado.

O calor da lareira lhe trazia animo e avivava as recordações.

As brincadeiras da infância em que governavam soberanos o Reino do Contrario e a linguagem secreta partilhada somente por eles. Também em segredo, dedilhando ao piano, compunham. Acreditava que seu amor por aqueles homens era tão grande que não se importava em creditar ao irmão a autoria das composições; não queria que o pai se zangasse.

Felicidade maior foi poder viajar pelas cortes europeias, apesar dos comentários maldosos de alguns – que velada ou abertamente – afirmavam que pareciam “micos de circo”. Naquela época não entendia porque o pai mentia a idade deles, não precisavam parecer prodígios, eles o eram!  

As badaladas do relógio anunciavam o início de uma noite que jamais caberia naquele tempo já vivido. O contraste da realidade das horas, medidas pelo relógio, convertia-se agora num tempo onírico cujo único instrumento capaz de medi-lo era ela própria.  

Submeter-se aos imperativos do pai, sufocando seu talento para que seu irmão se sobressaísse não lhe afetava, acreditava que os amava mais que a própria música. O que a angustiava era a rebeldia do irmão em relação às determinações do genitor e sua obstinação em fazer com que ela também se rebelasse. Não poderia, jamais, agradar a ambos. Deixaria que a sorte e o destino lhe trilhassem o caminho.

Aos dezoito anos fora proibida de apresentar-se devido à sua condição de mulher de classe. Obrigada a voltar para casa, para sustentar as viagens dos dois, teve que dar aulas de piano às jovens de sua cidade e dedicar-se às tarefas do lar para poder arrumar um bom casamento. Sua mãe lhe dizia que “a música sempre seria seu ornamento”.

Nem mesmo a paixão pelo capitão Franz foi permitida; ele não era bom partido. Sem coragem, acatou a decisão do pai, perdeu definitivamente a companhia e amizade do irmão. Submeteu-se às suas determinações e casou-se com o viúvo magistrado Sonnenburg, assumindo a criação dos cinco filhos dele e dos outros três que tiveram. Queimou suas composições, deixou a música para cumprir o papel que a sociedade lhe exigia: esposa e mãe zelosa. Nunca mais viu seu irmão. Era essa sua sina, afinal.

As brasas se apagando na lareira extinguem também o pouco de luz que havia na sala e em contraste com a turbulência de suas reminiscências lhe trazem finalmente a lucidez.

A única ousadia a que se permitiu – depois de mortos pai, irmão e marido – foi retomar as aulas particulares de piano para se reaproximar daquela, que somente nesse momento, percebeu ser o grande, único e verdadeiro amor de sua vida: a música!

A aproximação da aurora a leva para outros sonhos, outro mundo. Talvez, quem sabe, um mundo sem tempo, sem restrições, onde ela possa dedicar seu talento sem ressalvas. Nesse mundo a única coisa que deixou de concreto foi a inscrição em sua lápide, na igreja de São Pedro, em Salzburg: “Irmã de Wolfgang Mozart”.