MORREU DE QUÊ?

06/06/2017 10:45

O Exercício da profissão ensinou-me a importância de ouvir os estudantes. Desenvolvi o hábito de considerar aquilo que dizem. Assim, por sugestão de alguns, me dispus a assistir ao filme “Deus não está morto”.

É verdade que iniciei a atividade na própria unidade de ensino. Todavia, tinha apenas uma hora aula para fazê-lo. Logo, não foi possível concluí-lo.

Na sexta-feira à noite, em casa, convidei minha mulher e minha filha do meio a compartilhar a película comigo.

Antes de mais nada, necessito expor uma questão – pode parecer preconceito, todavia, não o é –: o binômio qualidade-quantidade provoca-me suspeitas. Para dizer a verdade, sou cético em relação a essa “coexistência pacífica” entre ambas. Diferentemente, vejo-as numa relação dialética: raríssimamente, ambas se completam. A vida, empiricamente falando, tem mostrado que uma exclui a outra. Insisto: não se trata de preconceito puro e simples; na quase totalidade das vezes, quando algo é apreciado à exaustão, se muitos estão adorando, pode acreditar, não presta! Qualidade e quantidade são atributos que não se relacionam. Opinião minha!

Contudo, em razão de elogios ao filme feitos por muitos estudantes.... Assisti-lo-ia.

Iniciamos a exibição: De cara incomodaram-me alguns fatos: o professor de Filosofia é o “ser do mal”, o “bandido do filme, a “mocinha”  dedicada à mãe que sofre com demência – logo veremos que é casada com o “professor do mal” –, ao contrário de seu irmão playboy capitalista sem escrúpulos que ignora a velha e a “mocinha de esquerda”, diagnosticada com câncer. Esse mesmo “mauricinho” namora a “mocinha de esquerda”. Em contrapartida, há o “mocinho”: um estudante cristão. Representa o bem. Há os padres ou pastores – não fica claro no roteiro, a princípio de que religião fazem parte. Ainda completam o elenco, a namoradinha do “mocinho do bem”, que é má e também há uma jovem muçulmana, na verdade, “cristã enrustida”.

O circo está armado: o “mocinho do bem” matricula-se no curso do “homem do mal”, o professor de Filosofia; este, no encontro inaugural, ao invés de expor seu trabalho, seus propósitos, como qualquer profissional que se prese – tenho autoridade para falar disso –, apresenta uma lista de filósofos, escritores, cientistas – como diz ele – ateus.

Em seguida, começa a pregação fundamentalista: há uma “verdade” indiscutível, indubitável: “Deus está morto”. Exige que todos os alunos – sem luz, o termo cabe aqui – copiem o texto, como dogma e assinem. Essa é a condição sine-qua-nom para realizar o curso.

Algumas ponderações: na lista do “professor do mal” estão os filósofos Descartes e Hume. O primeiro é do final do século XVI até a metade do XVII e o segundo é do século XVIII. São apresentados como “ateos”. Se eram ou não, a única forma de sabê-lo, seria perguntar-lhes. Todavia, creio, não seja mais possível. Caso o fossem, seriam idiotas de verbaliza-lo, com o “Santo Ofício” na “febre do rato” para jogar “infiéis” na fogueira da Inquisição? A resposta é bem óbvia. Além disso, na rica obra de ambos não existe nenhuma menção à questão.

A frase “Deus está Morto” é pinçada de um aforismo do filósofo Nietzsche, traduzido para o português na edição da obra “Genealogia da Moral”. Entendo que “leigos”, que não entendam de Filosofia e não conhecedores da produção intelectual do gênio, tenham dificuldade de compreender a expressão. Todavia, ao produzir um roteiro cinematográfico, se se pretende permanecer dentro da ética – de novo! –, da decência, da honestidade intelectual, aprenda. Ou no mínimo, se informe.

Explico: nessa expressão Nietzsche se refere à “razão esclarecida”. A morte no caso é dela, não de Deus. Nietzsche nos desvela um dos maiores problemas da humanidade –  no seu futuro e nosso presente –: o fundamentalismo! “As verdades preconcebidas”, os dogmas no lugar do raciocínio.

Pessoalmente, não vejo Nietzsche como agnóstico, porém, como cristão.

Como um professor de Filosofia apresenta algo como “verdade indiscutível”? Justo ele, cujo trabalho – ética, moral, epistemologicamente – é calcado no convite à reflexão, ao debate, ao encantamento do livre pensamento. Então, no filme, aquele não era um professor, um educador, mas, um padre, um pastor, um pseudoprofeta!

Evidente: a ideia é a seguinte: o “mocinho do bem” – o cristão – será desafiado a “provar a existência de Deus”, contra o dogma do “professor do mal”.

Consegue. Para isso, abdica do namoro com a “mocinha do mal”. Essa, egoísta, planeja e pensa o futuro para os próximos cinquenta nãos, uma idiota. Na verdade, não abdica, é “chutado”.

Vale frisar: toda a sala permanece omissa. Alguns demostram incomodo, outros, alienação. Porém, bundões, todos assinaram o dogma do “professor do mal”. Contudo, há um chinês, a princípio “em cima do muro” que logo “mostrará sua cara”. Abrirá os olhos! Várias vezes durante o filme, o chinês conversa com o pai, via telefone celular. O genitor está na China. Os diálogos são no idioma nativo de ambos – sem legendas –, convenhamos, facilita demais a compreensão do teor da conversa. Não se preocupe: até o final, será elucidado. O pai, chinês, capitalista, mas com sangue comunista, logo, “ateo”, indigna-se com o filho. Este está “tentado” a “virar a casaca”. Está sensibilizado com o “mocinho do bem”. Isso escancara-se ao final.

“A mocinha de esquerda – diagnosticada com câncer – no início da película, entrevista um “fulano” com ares hippies. Fez fortuna com algo não muito explicado. Uma espécie de máquina para atrair patos para matá-los. O cabeludão/barbudão é indagado pela “mocinha do bem” – autora de um “blog de esquerda – sobre a razão da matança das aves. Justifica-se com argumentos, enriquecidos por citações bíblicas, que o faz para comê-los; portanto, não há “problemas em exterminar cruelmente aves, se for para encher a pança e ficar rico”. Lindo! Chique!

O rico-hippie desaparece do filme. Ressurge ao final, durante o um “show” de jovenzinhos roqueiros-cristãos – quanta bobagem – num telão. Fala “coisas bonitas”. Fala em Jesus. Ou seja, o roteiro do filme tem seu propósito: “convencer” fanaticamente a existência de Deus. Parece não encontrar problemas num genocida de animais indefesos!

A “mocinha do bem” é “chutada” pelo playboy. Insensível, depois de ouvir suas lamúrias num restaurante chique, dispensa-a, pois, estava preocupado apenas em discorrer acerca de suas conquistas financeiras. Argumenta que a relação de ambos é um negócio como outro qualquer e,  por assim dizer, perdera os valores de uso e de troca. Portanto, hora de dar-lhe uma bica.

A jovem muçulmana – cristã enrustida – é “desmascarada” pelo irmão. O pai, ao descobrir sua verdadeira crença, espanca-a e a expulsa de casa. Dá nojo: reforça a ideia – do dogma, da segregação – de que todo muçulmano é fundamentalista! Como se todos fossem partidários do “estado islâmico”. É ofensivo à crença e a seus fiéis.

Durante o debate entre o “mocinho do bem” e o “professor do mal”, desvelam-se outras aberrações: para ser “amiguinho” do “professor do mal” tem de ser ateu. O mesmo é “tão cruel” que trata a “patroa” como empregadinha. Detalhe: essa também é cristã. Porém,  oprimida pelo “bandido”, vilipendiada, mas, estoicamente, “sofre calada”.

Volto às aulas: no processo de inquisição em que o “mocinho do bem” é vítimizado – “Coitadinho!” –  o “professor do mal” faz ameaças, reafirma ser o “único Deus na sala”. Ridículo. Qualquer professor de Filosofia – por mais “meia boca que seja” – não comete tamanha sandice. No entanto, em determinado momento, pressionado pelo “mocinho do bem”, o “professor do mal entrega a rapadura”: confessa que odeia Deus em razão de perder mamãe com câncer. Ainda que suplicasse por sua vida, o “Ser Supremo” o ignorou e “levou mamãe”.

Esse é o argumento usado pelo “mocinho do bem”: “ – Como você pode odiar alguém que não existe? ”

Bingo!

Chupa “homem do mal”!

Dá nojo da falta de caráter, da burrice, da safadeza da “produção do roteiro”. Num determinado momento, o “mocinho do bem” levanta a seguinte possibilidade: “ – A Filosofia não existe”. Um sonho para todos os medíocres e idiotas.

Não suporto mais essa conversa.

A prova da existência de Deus é a fé. Deus existe, pois, tenho fé. Isso basta!

Ateo. Do grego: ausência de Deus. Ora, não podendo provar sua existência, não se pode provar sua inexistência. A falta de fé não é o bastante para essa empresa. Ensinado por Umberto Eco – agnóstico – e pelo Cardeal Carlo Maria Martini em debate de altíssimo grau. Dois sábios intelectuais. Um crente e um descrente. Ambos concluem: somente pode-se nominar agnóstico, ou seja, sem fé. Da mesma forma que não se pode provar a existência do criador – a não ser pela fé –, sua falta não nos capacita a negá-lo.

Simples assim.

Sem fundamentalismos. Sem dogmas. Sem verdades absolutas. Como manda – ética, moral e epistemologicamente – um debate.

Se educa pelo convite à dúvida, pelo desafio e coragem intelectual, mediante provocações cognitivas.

Professar verdades, dogmas, “vomitar” fundamentalismos, é coisa de idiota.

O filme nos convida aos propósitos das profecias.

É patético!