“Há quem tenha medo que o medo acabe”

09/04/2014 21:57

 Esta semana, ao ouvir Mia Couto falar para a abertura de uma conferência sobre Segurança (2011) com um belíssimo discurso intitulado “Murar o Medo”, passei a refletir sobre o tema em questão. Vale dizer que o título desta crônica é a conclusão do discurso-texto do magnífico escritor moçambicano.

Quando era criança, lembro-me de que era comum ouvir dos adultos sobre um tal “homem do saco”. Creio que o mesmo aconteceu e, o que é pior, ainda acontece com muitas crianças. Com certeza morríamos de medo do dito-cujo.

Logo, ao observar algumas ruas da cidade, percebi que existiam muitos homens do saco. E mulheres e crianças também. Um verdadeiro exército deles rondava o centro de São Paulo, alguns a mendigar e esmolar, outros a recolher os restos que o comércio depositava às portas ao encerrar o dia — comidas, roupas, sapatos e outros objetos —, outros tantos a assaltar e roubar. O sentimento de medo, incutido pelos adultos sem a menor noção do que aquilo poderia acarretar, transformou-se em questionamento. Não creio que pais, tios ou avós intencionalmente quisessem fazer de nós seres covardes ou, o que é pior, preconceituosos. Como poderíamos temer pessoas que, na maioria das vezes, perambulavam à procura de algo para comer ou vestir?

Na escola, minha professora de História — querida e admirada Esterina — nos apresentou um bombástico poema de Manuel Bandeira: “O Bicho”. Mais inquietações e questionamentos, agora nutridos pelo poder das humanidades. Jorge Amado e, principalmente, os seus “Capitães da Areia”, Graciliano Ramos e a família de Fabiano e a cachorra Baleia de “Vidas Secas”, Carolina Maria de Jesus com seu “Quarto de Despejo”, Chico Buarque e Vinicius de Moraes em sua “Gente Humilde”, Charles Chaplin com seu eterno “Vagabundo”, entre tantos outros. História, Literatura, Poesia, Filosofia, Música, Teatro e Cinema, tudo isso sob a responsabilidade da escola e dos meus queridos professores, contribuíram e continuam a alimentar minhas aflições e reflexões.

Inquietações à parte, se a formação escolar não colaborou para alimentar o temor pelo “homem do saco” (despossuído até de sua condição de humanidade muitas vezes), continuava acreditando que não podia deixar o chinelo virado que a mãe morria, que portas de guarda-roupas abertas atraíam fantasmas...

Ciente de alguns desses pré-conceitos, com os meus filhos procuramos sempre dizer claramente acerca do que acreditamos para evitar evocar alguns dos tais conceitos equivocados que denomino genericamente de “conceitos homens do saco”. Quando eram menores e saíamos para algum lugar a que eles não podiam ir, esclarecíamos que eles tinham que ficar. Quando precisavam tomar remédios ou vacinas, alertávamos que era ruim ou dolorido, mas necessário. Desse modo, sempre confiaram naquilo que dizíamos. Porém, cresceram recebendo presentes de Natal do Papai Noel e ovos de chocolate do Coelho na Páscoa (fazia as pegadas do coelho pela casa para acharem os ovos), enviaram seus dentes à Fada do Dente — e ela (eu) colocou moedas em seus travesseiros — e ouviram muitos contos de fadas e bruxas e dragões e sacis; sem grandes traumas descobriram que isso fazia parte de um tempo mágico chamado Infância.

Confesso, criamos nossos filhos para ter um olhar crítico para com a miséria humana, que em função da ganância prioriza o lucro em detrimento do bem-estar das pessoas, que nos coisifica e nos torna somente um número nas estatísticas — mais um para o mercado do consumo.

A tarefa é árdua: discernir que respeito não significa obediência cega à coação e ao medo. Muitas vezes sofremos todos, porque a sociedade na maior parte do tempo se sustenta do medo para domesticar os incautos. E nesse conflito vamos aprendendo as sutilezas dessa perversa relação. Por isso nos alerta Mia Couto com a frase que dá título a essa crônica: “há quem tenha medo que o medo acabe”!

Tenho plena convicção de que as incoerências das situações que cotidianamente enfrentamos através de referências éticas e estéticas, e também através do exemplo, nutrem nossa relação com nossos filhos (e deles para com o mundo) para que sejam formados para: a coragem de acreditarem em seus projetos e sonhos; a honestidade consigo e com os outros; a gratidão e o respeito para com a vida e o mundo; e, finalmente, a ousadia de se tornarem cada vez mais humanos, e felizes!

P.S. Gostaria de dedicar as inquietações plantadas nesse singelo canteiro a todos que lidam com crianças e adolescentes. Para que possamos regá-los de esperança e coragem.