A Era que já Era

19/04/2017 08:17

Em meio a muita polêmica e estardalhaço, o filme “Aquarius” dirigido por Kleber Mendonça Filho e coproduzido por Walter Sales, estreou.

Uma das razões da notoriedade foi à manifestação da equipe no tapete vermelho de Cannes, no momento da cerimônia de premiação da “Palm D’Or”, quando boa parte dela protestou contra o processo de derrubada da presidente Dilma.

Todavia, não é a isso que se resume a película. Não havia assistido, contudo, existia o interesse em apreciá-lo, sobretudo pelas qualidades fílmicas que supunha existir.

Esse é um dos poucos problemas em morar na região: somos expropriados do direito ao acesso de assistir a bons filmes. Os cinemas da região se limitam a mostrar coisas que são atrativos de bilheteria em potencial. Os chamados “filmes de Arte” não passam. A saída são as locadoras ou a vã esperança de vê-los na TV por assinatura – outra falácia.

Desculpem o desabafo. Volto ao filme.

No sábado, depois de assistir a refilmagem de “Sete Homens e um Destino” de Antoine Fuqua – obra que causou boa surpresa (merece uma coluna) –, procurei outro canal, na crença de que poderia ser uma noite diferente. Um bom filme pode ser um presságio positivo, a possibilidade de encontrar algo decente para me entreter.

O controle acionou o Canal Brasil. Passava da meia hora do domingo de Páscoa. A programação apontava na sequência o filme “Aquarius”.  Beleza!

O primeiro plano da película abre numa sala de estar. Um homem, junto da família, em meio a uma celebração, declara seu amor à esposa, Clara, a qual sobrevivera a um câncer.

Corta.

Novo plano se abre: Clara agora é uma mulher com mais de sessenta anos. Houve música popular – não popularesca – brasileira. Está na sala de estar de seu apartamento: muitos livros e discos de vinil compõe o ambiente. Sua auxiliar prepara o almoço. Anuncia que haverá frango. Clara pergunta: “ – Haverá verdura?”. Sim, responde.

Ao deixar o edifício, rumo à praia, lê-se “Aquarius”.

A personagem Clara, como a atriz Sonia Braga, é uma mulher com mais de sessenta anos que conserva sua beleza, modificada pelo tempo, todavia, envelhecida com dignidade. Não há plásticas, montagens, maquiagens ou o uso de recursos de computador, a fim de simular uma realidade aparente. Nada é simulacro.

Vale ressaltar, Sonia Braga é marca de exuberância, sensualidade e sexualidade de um Brasil ditatorial. Seu charme e encantamento surgem durante a era Geisel, escancarada na personagem Gabriela, imortalizada nas telas das recém-nascidas televisões em cores.

Seu rosto correu o mundo. Apaixonou e excitou brasileiros – hoje cinquentões como eu –, nas películas “Dama da Lotação”, dirigida por Neville De Almeida, da obra de Nelson Rodrigues ou “Eu Te Amo” de Arnaldo Jabor. Brilhou em novelas. Posicionou-se. Enfrentou a ditadura. Rompeu padrões. Questionou moralismos. Cansou.

Foi para a “América”.

Morando em New York, fez carreira internacional. Protagonizou o “Beijo da Mulher Aranha”, dirigido por Hector Babenco, da obra de Manuel Puig; atuou com Clint Eastwood, por exemplo.

Enfrentou um câncer. Venceu.

Estrela de cinema. Cansou.

Retornou ao Brasil.

O glamour de Hollywood é passado.

Todavia, não perdeu a altivez, muito menos a beleza, o charme e a dignidade.

Lá está ela, no papel de Clara, jornalista aposentada, escritora, sobrevivente de um câncer. Envelhecendo com dignidade.

O nome do edifício onde reside – Aquarius – não é gratuito. É o desígnio de uma Era, apontada nos anos sessenta como aquela, segundo a qual, haveria transformações e promessas de vida melhor.” Flower Power”; “Love and Peace”!

Clara é uma mulher daquela época. Ouve música de qualidade em discos de vinil; come comida natural antes dos modismos; curte um baseado. Vive no “Aquarius”. Porém, está só. Sobreviveu a um câncer está viúva.

Não está solitária no apartamento, mas, no prédio. É a única moradora. Por quê?

Todos os demais apartamentos foram vendidos a uma grande construtora, cujo plano é derrubá-los. Erguer no local um novo empreendimento. É a especulação imobiliária! O capitalismo ainda respira! Anseia lucros e mais lucros.

A “modernidade” é vista na figura do novo empreendedor: o avô, coronel, dono da construtora, passa os “negócios da empresa” para o jovem neto. Formado arquiteto, especializado em “business” nos Estados Unidos, o playboy quer “inovar”. Para isso é mister destruir o “Aquarius” e tudo aquilo que representa.

Faz propostas. Clara rejeita.

Nova estratégia de venda: o novo edifício chamar-se-á “Novo Aquarius”. Novas pseudo promessas de pseudos bons agouros. Pseudo novo tempo. Simulacro.

Clara as despreza!

Mantém com um sobrinho, filho de seu irmão advogado, um relacionamento amoroso e sincero. Mais intenso e verdadeiro em relação ao convívio frio e distante com os filhos, artífices de “esquemas” e “argumentos” para convencê-la a vender o apartamento. “Apenas preocupados com seu bem estar”. Clara sugere ao sobrinho – prestes a receber a nova namorada, vinda do Rio de Janeiro – que ouça e lhe toque Maria Betânia.

Qual jovem escuta Bethânia hoje?

Clara segue em frente.

Ouve música; fuma um baseado; sai com as amigas; vive a sexualidade.

O assédio não para.

O playboy usa todos os recursos: como é ligado a um dos “novos cultos”, promove ações de “sua” igreja no prédio. Afinal, a construtora é proprietária dos demais imóveis.

Promove orgias, com som nas alturas. Manda espalhar fezes nas escadas.

Não adianta. Clara é incorruptível a seus princípios e escolhas. Próprios de outras eras e utopias. Não é uma mulher “desse” tempo. Não vende e pronto. Nem por quase dois milhões de reais. Proposta acima das “leis do mercado”, argumentado pela filha – a grande atriz Maeve Jinkings – exemplo de mulher infeliz e alheia.

As pressões pela venda seguem. Clara resiste.

Procurada por dois ex-empregados da construtora, é convidada a verificar algo guardado em apartamentos acima do seu.

Com o auxílio do amigo bombeiro – o genial Irandhir Santos -, arromba as portas e se choca. O playboy estava a cultivar um exército de cupins, com o propósito de infestar o “Aquarius” e destruí-lo. Logo, o apartamento de Clara também seria jantado pelos bichinhos.

“Quanto vale ou é por quilo?”

Com quantos cupins se faz o capitalismo?

No programa comandado pelo jornalista Mario Sergio Conti, assisti a uma entrevista com o jurista Flavio Bierrembach. O intelectual discorria acerca de nosso fracasso político, em especial ao político partidário e as ideologias. Sabiamente, afirmava, para superar essa “Era” é necessário que haja um binômio pautado em competitividade e cooperação. Aliar os produtores e os cientistas, como nos ensinava o “socialista utópico” Saint-Simon.

Difícil? Sem dúvida. Possível?

Clara e o “Aquarius” representam uma Era que luta para não sucumbir.

O “Novo Aquarius” luta para sucumbi-la.

Competitividade – injusta – de um lado e cooperação do outro. Essa última mais presente no plano das utopias.

Clara é utópica. Aquarius é uma Era utópica.

Depois de um arrebatador final, a película encerra ao som de “Hoje”, do finado, esquecido e utópico Taiguara.

PUTA FILME!